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GRAMÁTICA DE ESTILOS - ARQUITETURA SACRA

Bruno Minchilo



Se a arquitetura é a forma construída das ideias, a arquitetura sacra é uma “gramática da fé em forma construída”.

Esse é a primeira de uma série de postagens com o intuito de apresentar, uma breve introdução à linguagem da arquitetura sacra.

No livro Catholic Church Architecture and the Spirit of the Liturgy, o Prof. Denis McNamara apresenta a ideia da arquitetura como “gramática da fé em forma construída”[1]. Partindo de conceitos de Ludwig Wittgenstein, que evidencia uma profunda semelhança entre linguagem e arquitetura, McNamara observa que um edifício sempre fornece uma declaração simbólica, ainda que essa não seja sua intenção inicial.


Dessa forma, a arquitetura deve ser contemplada como meio de transmissão de informações e deve possuir um sistema que, como a linguagem, seja composto de formas convencionais e reconhecíveis, capazes de suportar tanto as mais grandiosas declarações, quanto as mais sutis. Tais noções de gramática e regras a serem seguidas são aplicáveis ​​a diversos exemplos de notáveis obras arquitetônicas ​​ao longo da história.


Mas, se a arquitetura é a forma construída das ideias, a arquitetura sacra é a forma construída da teologia, de modo que podemos considerar a arte e a arquitetura litúrgicas constituintes dessa gramática da fé.


Nota-se que o princípio pedagógico da arte sacra como meio transmissão de informações já havia sido enunciado por diversos papas e padres da Igreja ao longo da história. São Gregório Magno, por exemplo, em 599 escrevia ao Bispo Sereno de Marselha numa carta: “A pintura é usada nas igrejas, para que as pessoas analfabetas possam ler, pelo menos nas paredes, aquilo que não são capazes de ler nos livros”.[2]


Porém, o simbolismo de uma obra sacra, desde a arte pictórica à mais completa obra arquitetônica, vai além do aspecto de instrução dos fiéis no que se fundamenta em uma profunda teologia sacramental. Isto é, ainda segundo o Papa São Gregório Magno e ecoado posteriormente pelo papa Bento XVI, enquanto Cardeal Ratzinger, existem três grandes períodos de tempo na revelação divina[3]: o primeiro é o “tempo das sombras”, em que diversos eventos, pessoas, bens e ideias prefiguravam e preparavam o povo eleito de Israel para a vinda do Messias. Por outro lado, no futuro teremos o denominado “tempo da realidade”, que será a plenitude da revelação, a visão beatífica celeste, conhecer a Verdade, que é Deus, como Ele é.[4]


Entretanto, sabemos que ainda não estamos na plenitude da revelação, todavia Cristo encarnou nos trazendo o seu Evangelho e, portanto, não estamos mais no tempo das sombras. Dessa forma nos encontramos nesse “entre-tempos”, a Igreja do Novo Testamento em que o “tempo da imagem” entra no lugar das sombras. É o tempo do alvorecer, no qual o sol começa a nascer, porém ainda não espontou completamente, como afirma São Gregório:


Como a aurora ou o alvorecer se transformam gradualmente das trevas em luz, a Igreja, que compreende os eleitos, é apropriadamente denominada aurora ou alvorada. Enquanto ela está sendo conduzida da noite da infidelidade para a luz da fé, ela é gradualmente aberta ao esplendor do brilho celestial, assim como a aurora cede ao dia após a escuridão. O Cântico dos Cânticos diz apropriadamente: Quem é esta que avança como a aurora nascente? Em virtude de sua busca constante pelas recompensas da vida eterna, a Santa Igreja é chamada aurora, pois abandonou as trevas dos pecados e começou a refulgir com a luz da justiça.
Essa referência ao amanhecer evoca uma consideração ainda mais sutil. A aurora anuncia ter passado a noite, no entanto, ainda não mostra toda a claridade do dia (...)
Por isto, quando Paulo diz: “A noite passa” não acrescenta logo: Chegou o dia, mas: “O dia se aproxima”[5]. Ao dizer que, passada a noite, o dia não veio, mas se aproxima, demonstra, sem qualquer dúvida, estar ainda na aurora, depois das trevas e antes do sol.[6]

Para além de imagens físicas e simbólicas, o “tempo da imagem” se refere ao período em que as realidades celestes estão de alguma maneira latentes para serem acessadas.[7] Pois somente quando chegarmos ao céu, o tempo do cumprimento, o véu será retirado e o veremos “como ele é” (1 Jo 3:2).[8] Nesse sentido destacam-se as palavras de São Paulo: Videmus nunc per speculum in aenigmate, tunc autem facie ad faciem.


Nós agora vemos (a Deus) como por um espelho, obscuramente, mas então (o veremos) face a face. Agora conheço-o, em parte, mas, então, hei-de conhecê-lo, como sou conhecido.[9]

Na liturgia eucarística, os tempos confluem e se tornam reais a nós, concomitantemente. O passado vem à frente pois, enquanto no alto do Gólgota cumpriu-se o sacrifício cruento na Cruz, uma vez ad aeternum, a cada celebração do Sacramento Eucarístico, cumpre-se continuamente, e de geração em geração, sob as espécies do pão e do vinho, o mesmo, único e irrepetível sacrifício da Cruz, de forma incruenta.


O futuro, tempo da realidade, nos vem por antecipação, pois a Santa Comunhão é uma antecipação da união nupcial que ocorrerá nos céus, entre Cristo, que é o esposo, e a Igreja, sua esposa. Desse modo, aquele que participa devota e dignamente do Sacrifício Eucarístico, une-se mais intimamente a Deus e é conduzido, por Ele e através d’Ele, à intimidade do mistério da Santíssima Trindade.[10] Enfim, a liturgia terrena é liturgia pois adentra e se insere em algo maior, isto é, na liturgia celeste, que já existe e está desde sempre em ação. Segundo o Cardeal Ratzinger, essa liturgia é “a mais alta expressão da beleza da glória de Deus e, de algum modo, constitui um vislumbre do Céu na Terra”.[11]


Por fim, o Santo Sacramento é também a continuação do mistério da encarnação no que, mais que um símbolo, é a real presença de Cristo, sob as espécies de pão e de vinho, como pôs em evidência o Concílio de Trento com expressões precisas e inequívocas (“vere, realiter, substantialiter”).[12] Mas, ao passo que mistério eucarístico vai muito além de um símbolo, a Sagrada Liturgia, que envolve esse mistério, se utiliza de diversos simbolismos que encontram em Cristo eucarístico o seu sentido e a sua luz. Pois de maneira semelhável, mas imperfeita, desvelam e comunicam uma realidade divina que transcende a si, evidenciando a íntima relação existente entre a imagem, e a liturgia:


(...) no ícone existe a mesma orientação espiritual que já vimos na liturgia: quer nos atrair para um caminho interior, aquele que segue rumo ao "Oriente", para Cristo que está para voltar. A sua dinâmica é, em tudo e por tudo, idêntica à dinâmica da liturgia.[13]

Uma vez entendido o fundamento e a essência do simbolismo presente em uma obra sacra, e a sua íntima relação com as realidades sacramentais, podemos, então, ratificar a arquitetura litúrgica constituinte de uma gramática da fé. Por consequência, conforme sugere McNamara, a lei de nossa fé deve ditar a maneira como construímos, ressaltando a importância da arquitetura pela extensão da máxima de São Próspero de Aquitânia: lex orandi – lex credendi para incluir também lex aedificandi (lei da construção).


lex orandi – lex credendi – lex aedificandi estão necessariamente ligadas e caminham de mãos dadas.

Enfim, cada postagem irá trazer um estilo de arquitetura sacra que compõem essa grande gramática da fé, baseando-se em trechos do livro “How to Read Churches”, também de Denis McNamara, traduzidos e adaptados.


Sábado, 03 de Setembro de 2022,

Memória de São Gregório Magno, Papa e Doutor da Igreja.


 

Bruno Minchilo é Arquiteto e Urbanista, especialista em Arquitetura e Arte Sacra pela Faculdade São Basílio Magno (FASBAM). Devoto de Santa Teresa de Jesus adotou um trecho do clássico “Imitação de Cristo”, reverberado por essa grande santa, como lema para a sua vida profissional e espiritual, em uma busca continua por tornar as igrejas e, principalmente, os corações, moradas de Deus.


“É pelo preparo do aposento que se conhece o amor de quem acolhe o seu Amado”.

Imitação de Cristo. Livro 04, cap. 12, 1.

 

NOTAS


[1] Cf. MCNAMARA, Denis. Catholic Church Architecture and the Spirit of the Liturgy. Chicago, Hillenbrand Books, 2009, p.11.

[2] Epistulæ, IX, 209: CCL 140A, 1714. Apud Papa João Paulo II, op. cit., 4 de abr., 1999, n.5.

[3] Cf. RATZINGER, Joseph. Introdução ao Espírito da liturgia, ed.4. São Paulo, Edições Loyola, 2015, p. 48.

[4] Cf. MCNAMARA, Denis. Op. Cit., 2009, p.11-33.

[5] Romanos 13, 12

[6] Dos Livros “Moralia” sobre Jó, São Gregório Magno, séc VI (Lib. 29,2-4:PL76,478-480). Cf. Liturgia das Horas, Ofício das Leituras, Quinta-feira da 9ª Semana do Tempo Comum.

[7] Cf. Op. cit. MCNAMARA, D., 2012

[8] Opus Sanctorum Angelorum. Understanding the Liturgy, pt. 2: Signs & Symbols. Circular Letter: Advent 2007.

[9] 1 Coríntios 13, 12. Trad. Vulgata Pe. Matos Soares

[10] Cf. STÖCKL, Pe. Fidelis ORC. As três dimensões essenciais da Santíssima Eucaristia. De Magistro - Revista de Filosofia, Ano V, n.10, Anápolis, 2012, p.12.

[11] Cf. BENTO XVI, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades. Vaticano, 22 maio 2006.

[12] Cf. Papa João Paulo II, Encontro de oração na Catedral para a comemoração do 450º aniversário do Concílio de Trento. Trento, 30 de abril de 1995, n.5.

[13] RATZINGER, Joseph, op. cit., p.104.

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