Bruno Minchilo
Esse é a segunda postagem da série Gramática de Estilos, que busca trazer uma breve introdução à linguagem da arquitetura sacra. Tratarei aqui, brevemente, da arquitetura no período denominado de igreja primitiva:
Depois de ter pregado o Evangelho na Judeia, (...) os Apóstolos se separaram e foram pregar por todo o mundo.[1]
Graças à sua pregação, a Igreja penetrou e se expandiu por todo o Império Romano, de modo que o historiador Tácito, no ano 66, afirmara que já era grande o número de cristãos na capital do Império[2]. Todavia, a mensagem evangélica, desde a sua aparição, se opunha substancialmente às bases do Império, de modo que, conjuntamente à expansão da fé, muitas perseguições terríveis se levantaram contra os discípulos de Cristo[3]:
Nos três primeiros séculos, muitas perseguições terríveis levantaram-se contra os discípulos de Cristo, por ordem dos imperadores romanos. (...) Inumeráveis multidões deram testemunho, com o derramamento de seu sangue, da fé em Cristo, por cuja confirmação os Apóstolos e seus imitadores haviam morrido. (...) A Igreja reconhecia estas preciosas vítimas da fé, recolhia seus cadáveres, dava-lhes sepultura honrosa nos lugares santos da Dormição e os admitia às honras dos altares.[4]
Como resultado, fora dos muros da cidade de Roma erigiu-se uma cidade subterrânea, constituída de grandes e prodigiosos cemitérios, nos quais gerações de cristãos enterraram os seus mortos. Inicialmente, esses lugares eram chamados simplesmente de "cemitérios" ou "dormitórios", posteriormente, porém, eles passaram a ser denominados de "catacumbas".[5]
Tendo em mente que o corpo do Senhor foi deixado em um sepulcro novo escavado na rocha, eles estavam ansiosos por proverem para os seus entes queridos uma tumba parecida, a fim de que também na morte eles seguissem a imitação de Cristo.[6]
Quando se entra nesta “Roma subterrânea”, fica-se maravilhado com a sua vastidão, nelas, existem diversas câmaras, de tipos e tamanhos variados de acordo com a natureza do solo em que foram escavadas. Em certos pontos as galerias chegam a ter cinco andares, e a mais profunda situa-se vinte e cinco metros abaixo da superfície. As passagens se encontram próximas umas às outras, em distâncias que variam de três a dez quilômetros dos muros da antiga Roma e calcula-se que, unidos, o comprimento desses corredores subterrâneos exceda 560 quilômetros de extensão.
Se as catacumbas de Roma são as mais relevantes, algumas remontando ao século I como as chamadas “grutas vaticanas”[7], encontram-se outros exemplares, igualmente relevantes, em Nápoles, na Sicília, na Toscana, na África, no Egito e até na Ásia Menor. O trabalho de escavar tamanhas galerias e um complexo sistema de corredores, foi confiado à confraria dos fossores. Quase membros da hierarquia eclesiástica, ou ao menos seus assistentes imediatos, estes coveiros, mediante a uma imensa paciência, ciência e audácia, entrecruzaram as galerias, sobrepuseram-nas e organizaram-nas em prodigiosos labirintos. Por fim, sobre quilômetros de paredes, estenderam o reboco destinado a receber a decoração policrômica da dita arte paleocristã.
A mais antiga arte figurativa cristã sobrevivente vem, justamente dessas câmaras funerárias (catacumbas) feitas no subsolo durante a perseguição aos cristãos no Império Romano. As lajes de sepultura eram colocadas em paredes ornamentadas com pinturas a fresco carregadas de simbolismo clássico cristianizado[8].
Por volta do ano 217, Calixto, antigo escravo, procurador bancário, forçado das minas, e posteriormente um administrador-geral dos cemitérios (fossor), será feito papa e terá o seu nome ligado a uma das mais interessantes “regiões” nas catacumbas da cidade. São Calixto I enfrentou a perseguição de Septímio Severo[9]. Tais perseguições persistiram até o século IV, no qual, após um período de transição, a Igreja passará da situação clandestina para se tornar, no ano de 380, a religião oficial do Império Romano.
Com a conversão do Imperador Constantino e o Édito de Milão, 313, cessaram-se as perseguições aos cristãos, assim, o cristianismo cresceu em uma cultura romanizada, completa com as suas próprias tradições de arquitetura, pintura, metalurgia e serralheria, mosaico e escultura. Sob o imperador e seus sucessores, a tradição clássica foi assimilada aos preceitos e costumes católicos e arte cristã pôde se desenvolver e proliferar. Os primeiros cristãos observaram isso não como uma simples adoção do passado, mas como uma evidência da providência divina que preparou um fértil terreno artístico para o cristianismo florescer.[10]
Muitas das tradições que antes glorificavam o imperador foram convertidas para Cristo, enquanto os símbolos culturais existentes de eternidade e vitória repentinamente receberam um novo significado.[11]
Ademais, o templo escuro e estreito das catacumbas, ou as casas adaptadas (domus ecclesiae), não eram espaços adequados para a realização das celebrações litúrgicas, de modo que, logo, a arquitetura da basílica romana, será adotada essencialmente como modelo para os projetos dos edifícios para o culto cristão. Tal como Constantino e Helena, e depois os seus sucessores, a mandaram construir.
A basílica romana era um grande espaço para reuniões, destinada a diversos fins, sobretudo à administração da justiça[12]. Durante o República Romana o Fórum Romano compreendia as basílicas de Porcia, Fulvia, Sempronia e Opimia, construídas entre 184 e 121 AC. Após 46 AC, foi erguida a grande Basílica Júlia de César e Augusto. Pelo seu decoro e grandeza, a basílica romana era um edifício propício, que comportaria de maneira adequada as celebrações e demais serviços da igreja cristã.
Estes edifícios foram concebidos para embelezar o Fórum e servir tanto para fins de mercado como para a administração da justiça. Eram abertos ao público e bem iluminados.[13]
Em síntese, o edifício era uma construção alongada com três naves, uma maior central e duas menores laterais, divididas por colunas, cujo teto e vigamento assentavam sobre as colunatas e recebendo luz por janelas que encimavam as naves laterais. Eram completadas, enfim, por um vestíbulo à imitação do que existia nas casas e, às vezes, por uma parte arredondada num dos extremos, a abside, em que se situava o altar.[14]
As primeiras igrejas cristãs, utilizaram-se tanto da configuração arquitetônica, quanto dos elementos ornamentativos e decorativos comuns às basílicas romanas. Os resultados foram obras como: a Basílica de São João de Latrão, a Basílica Constantiniana de São Pedro, a Basílica de Santo Ambrósio, em Milão e muitas outras. Essas igrejas basilicais[15] por vezes foram construídas sobre os túmulos de mártires das perseguições, como é o caso da basílica construída por Santo Ambrósio cujo nome inicialmente era Basílica Martyrum. As igrejas eram ornadas tanto exteriormente, como no interior, com pinturas, mosaicos e esculturas que elevam os corações e as mentes aos mistérios da fé.[16]
Para adentrar-se a uma basílica, adentrava-se ao átrio, chamado de “paraíso” em algumas igrejas primitivas, o pátio aberto da basílica muitas vezes continha um jardim e uma fonte para ablução. Gradualmente os átrios desapareceram das novas igrejas, mas sobreviveram na Basílica medieval de Santo Ambrósio.[17]
O átrio é reservado aos catecúmenos e penitentes; na nave principal amontoam-se os fiéis, homens à direita e mulheres à esquerda; em frente, separado por grades, está o coro, onde se instalam os presbíteros; no vão da ábside, a cadeira episcopal.[18]
A arquitetura basilical influenciou profundamente os diversos estilos das igrejas no ocidente até o século XX e, embora tenha sido por vezes preterida em projetos de igrejas modernas, há um crescente interesse e promoção para que as igrejas retornem a incorporar as suas características. Nesse sentido, destacaria dois projetos realizado pelo McCrery Architects: primeiramente o da igreja St. Mary, Help of Christians, Aiken, EUA; em segundo, e especialmente, o projeto recém compartilhado de uma capela estudantil, Christ the King Chapel, realizado em 2016 para a Franciscan University, em Steubenville, Ohio.
Ambos os projeto adotam diversos aspectos do estilo basilical, não se limitando a aspectos da configuração da planta arquitetônicas ou disposição da igreja. Embora nunca implementado, o projeto da capela, digno de nota, adota em sua planta geral o plano de uma basílica cruciforme e, na concepção do projeto, percebe-se um telhado de madeira com treliças abertas do tipo que se vê frequentemente em modelos clássicos de basílica, bem como uma nave alinhada por colunas coríntias. Ademais, o projeto dispõe de um ciborium Magnum (baldaquino) que ecoa aquele encontrado na Basílica de Santo Ambrósio, citada anteriormente.
Enfim, os projetos mostram que tais elementos podem e devem ser estimulados em projetos atuais, em maior ou menor medida, numa busca conjunta por refletir a santidade dos grandes santos em nossas vidas, bem como a beleza e o decoro de suas igrejas nas nossas.
Quarta-feira, 07 de Dezembro de 2022,
Memória de Santo Ambrósio de Milão, Bispo e Doutor da Igreja.
Bruno Minchilo é Arquiteto e Urbanista, especialista em Arquitetura e Arte Sacra pela Faculdade São Basílio Magno (FASBAM). Devoto de Santa Teresa de Jesus adotou um trecho do clássico “Imitação de Cristo”, reverberado por essa grande santa, como lema para a sua vida profissional e espiritual, em uma busca continua por tornar as igrejas e, principalmente, os corações, moradas de Deus.
“É pelo preparo do aposento que se conhece o amor de quem acolhe o seu Amado”.
Imitação de Cristo. Livro 04, cap. 12, 1.
NOTAS
[1] Catecismo Maior de São Pio X, Breve História da Religião, pt.II. §119.
[2] Cf.Tácito, Anais, XV, 44. Apud. Catacumbas atestam: Jesus está realmente presente na Eucaristia. Equipe Christo Nihil Praeponere 25.Jan.2016.
[3] Segundo as leis romanas, os cristãos incorriam no crime de lesa-majestade e de sacrilégio a partir do momento em que repudiavam, mesmo intimamente, os deuses do Império e fugiam ao culto de “Roma e Augusto”. Todavia, para haver sacrilégio é necessário que haja um ato, de modo que somente no séc. III encontrar-se-á textos jurídicos, fundamentando as perseguições na sua recusa dos cristãos de prestar sacrifício à “Roma e Augusto”. Pode-se, portanto, compreender as perseguições em duas partes: De 64 a 192, serão relativamente espontâneas, retardadas ou aceleradas pelos poderes imperiais, mas esporádicas e sem apresentarem um aspecto sistemático. A partir do séc. III, estabelecer-se-ão as perseguições por editos especiais, emanados do próprio governo e aplicáveis a todo o território do Império, essas serão muito mais intensas e sangrenta do que as primeiras. Cf. ROPS, D. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. São Paulo, Quadrante, 1988, p.159-160.
[4] Catecismo Maior de São Pio X, Breve História da Religião, pt.II. §121-122.
[5] Cf. Equipe Christo Nihil Praeponere. op. cit., 2016.
[6] Ibid.
[7]São as "grutas vaticanas ", a catacumba de Comodila na Via Óstia , as regiões de Santa Priscila , de Santa Domitila e de Ostriano. Cf. ROPS, D. op. cit., 1988, p.198.
[8] MCNAMARA, D. How to read churches: A crash course in ecclesiastical architecture. N. York, Rozzoli, 2017, p.31.
[9] Cf. ROPS, D. op. cit., 1988, p. 200; 324.
[10]MCNAMARA, D. op. cit., 2017, p.30.
[11] Ibid.
[12] Cf. ROPS, D. op. cit., 1988, p.517.
[13] Basilica. New Advent, Catholic Enciclopedia.
[14] Vitrúvio. De architectura. V, c. I - II.
[15] Nota-se, que o termo basílica pode indicar o antigo edifício público romano, o estilo arquitetônico de uma igreja, ou, ainda, o seu status canônico (Futuramente iremos tratar desse tema).
[16] Rev. Kevin C. Rhoades. Serving the Church Through Architecture. Journal of the Institute for Sacred Architecture, v.27 - Spring 2015.
[17] MCNAMARA, D. op. cit., 2017, p.31.
[18] Cf. ROPS, D. op. cit., 1988, p.517.
Comments