Bruno Minchilo
“Os vitrais [da igreja] são os homens espirituais, pelos quais resplandece sobre nós o conhecimento divino”. Hugo de São Vitor. [1]
O simbolismo anagógico da arquitetura gótica e a sua íntima relação com a filosofia do Pseudo-Dionísio Areopagita é um pensamento corrente entre grande parte daqueles que se propõem a estudar o estilo. Erwin Panofsky, crítico e historiador da arte alemão, foi o primeiro a propor essa relação[2] que, posteriormente, fora corroborada por autores como Otto Von Simson[3] e Georges Duby.[4] Conforme Duby, em seu livro O Tempo das Catedrais, o estilo gótico nasceu da teologia da luz, em que o seu precursor, Abade Suger, quis fazer da Abadia de Saint Denis uma obra arquitetônica que exprimisse materialmente a metafísica da luz do Areopagita.[5]
No primeiro capítulo de sua obra, De Caelesti Hierarchia, Pseudo-Dionísio introduz a concepção de Deus como Luz, a qual ilumina a toda a criação à maneira de uma emanação. A mesma Luz que ilumina todos os seres, os converte à unidade em si.
A Luz irradia do Pai. A Luz sai d’Ele para nos iluminar com os Seus excelentes dons. Apenas Ela nos restabelece e nos eleva. É Ela que nos converte à unidade do Pai segundo as Sagradas Escrituras: “Porque Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas...” (Rm 11, 36) [6]
Deus, o Bem do qual deriva a “Luz imaculada e sublime, de esplêndida e inefável beleza” [7] ilumina com os raios de sua sublime bondade, de forma hierárquica e ordenada, as coisas que podem participar de sua Luz.[8] A Luz divina não é apenas imanente, mas, como o Sol, uma vez que existe, emana para todos os seres de forma hierárquica e proporcional ao grau de proximidade com a fonte da Luz, isto é, o próprio Deus. Como um corpo, que se torna mais ou menos quente na proporção de sua proximidade com o fogo.[9]
A luz deriva do bem e é a imagem da bondade; por essa razão, celebra-se o bem chamando-o luz, como o arquétipo que se manifesta na imagem (...) se alguma coisa não participa nesta irradiação, tal fato não se deve atribuir à sua obscuridade ou à insuficiência da distribuição da luz (divina), mas às coisas que não tendem à participação da luz por causa de sua inaptidão em recebê-la. [10]
Tanto o mundo sensível, quanto o inteligível participam dessa hierarquia, sendo que o mundo material é imagem e nos revela, através de sua estrutura e participação na iluminação divina, o ordenamento e a hierarquia celeste. Dessa forma, tudo o que é belo necessariamente reflete a Beleza divina, não existindo algo cuja beleza lhe seja própria. Do mesmo modo uma obra artística será bela apenas se refletir ou participar de sua Luz. A estrutura arquitetônica das igrejas góticas aspirava iluminar e elevar a matéria, o templo físico, aproximando-a do manancial da Luz. Ao mesmo passo em que buscava a unidade dos espaços da igreja pela coesão da luz.
Na Sainte-Chapelle de Paris, construída no século XIII por São Luís IX, percebe-se como o efeito nunca manifesta tudo quanto está dentro da causa, mas apenas participa dessa irradiação.
Concebida para abrigar a mais santa das relíquias de Cristo, a Coroa de espinhos, a capela era como que um maravilhoso relicário de vitral[11]. Tamanha era a sua beleza, grandeza e esplendor que por vezes a ela foi conferido o título de "catedral infante", ou a jóia da arquitetura gótica.
Contudo, por mais bela e esplendorosa que seja, São Luís era enormemente maior do que a Sainte-Chapelle. Da mesma maneira, o santo não mais fazia que irradiar a Luz que lhe iluminava.
Nele culminam e se realizam todas as virtudes que mil e duzentos anos de cristianismo fizeram germinar no homem. (...) Aos olhos da posteridade, São Luís não se tornou somente o tipo ideal de homem que a Idade Média concebeu, mas também uma dessas figuras insuperáveis que são, no decorrer dos tempos, os penhores da grandeza humana. [12]
Quinta-feira, 25 de Agosto de 2022,
Memória de São Luís IX, Rei da França.
Bruno Minchilo é Arquiteto e Urbanista, especialista em Arquitetura e Arte Sacra pela Faculdade São Basílio Magno (FASBAM). Devoto de Santa Teresa de Jesus adotou um trecho do clássico “Imitação de Cristo”, reverberado por essa grande santa, como lema para a sua vida profissional e espiritual, em uma busca continua por tornar as igrejas e, principalmente, os corações, moradas de Deus.
“É pelo preparo do aposento que se conhece o amor de quem acolhe o seu Amado”.
Imitação de Cristo. Livro 04, cap. 12, 1.
NOTAS
[1] VITOR, Hugo de São. Sermo I. Sobre o sentido alegórico da dedicação de uma igreja.
[2] Cf. PANOFSKY, E. Abbot Suger on the Abbey Church of St. Denis and Its Art Treasures. New Jersey, Princeton University Press, 1979.
[3] Cf. Otto Von. The Gothic Cathedral, Origins of Gothic Architecture and the Medieval Concept of Order. Princeton, Princeton University Press, 1974.
[4] Cf. DUBY, G. O tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980 -1420. Lisboa, Estampa, 1978, p.103-136.
[5] Ibid.
[6] DIONÍSIO, Pseudo-Areopagita. Da Hierarquia Celeste: Bibliotheca Patristica, c. 1.
[7] Corpus Dionysiacum, v.2: Gruyter; 1990-91- Caelesti Hierarchia, c.2, n.4.
[8] Cf. COSTA, Ricardo da. A luz deriva do Bem e é imagem da Bondade. Scintilla, Revista de Filosofia e Mística Medieval, v.6, n.2 (FFSB); Curitiba, 2009, p. 39-52.
[9] Cf. RAMOS, Felipe de Azevedo. Luz, esplendor e beleza em Pseudo-Dionísio Areopagita. Lumen Veritatis - Revista tomista | Filosofia Teologia - Tomás de Aquino, [S.l.], ago. 2014, v. 5, n. 20, p. 34.
[10] DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos Nomes Divinos. Attar Editorial; São Paulo, 2004, p. 94. Apud COSTA, Ricardo da. Op. cit., 2009, p. 44.
[11] Cf. ROPS, Daniel. História da Igreja de Cristo: A Igreja das catedrais e das cruzadas. São Paulo, Quadrante, 1993, v.III, p.49.
[12] ROPS, Daniel. op. cit., p.325.
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